João de Deus – O milagre que não aconteceu

Meu irmão foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Na nossa infância ele me protegia: Na escola, das crianças más e até em casa dos maus humores de nossa mãe. Brincávamos juntos, em nossa infância pobre, com mangueirinha de ossos, ovelhas de algodão, carrinho de lata de sardinha. Esperamos durante anos a promessa de um tio gaiato que nos traria um petiço verde (da cor da esperança) claro que o petiço nunca chegou.

Essa relação de amor e cumplicidade nos guiou vida a fora, nos bons e maus momentos, sempre fomos a ancora um do outro. Quando em 2010 o Mauro me ligou dizendo que uma biopsia havia apontado um câncer de pele muito invasivo, desmoronei. Claro que o consolei falando dos progressos da medicina, mas ouvindo falar do milagreiro João de Deus, que atendia na pequena Abadiânia, no estado de Goiás, fui em busca de um milagre de cura para meu irmão.

Saímos cedinho de Brasília, fui informada que as fichas eram distribuídas somente até às 10 da manhã. Chegando na Casa Santo Inácio de Loyola, onde o médium atende, fiquei surpresa com a quantidade de pacientes que como eu buscavam atendimento, a maioria casos muito graves que haviam sido desenganados pela medicina.

Havia tradutores interpretes de inglês, francês, espanhol e alemão. A fama do médium brasileiro se espalhara pelo mundo por meio de gravações de documentários e entrevistas até com Oprah Winfrey, para se ter uma ideia. Passaram por seu centro religioso famosos como: Ronaldo Fenômeno, Xuxa, Juliana Paes, Cissa Guimarães e até Naomi Campbell. Isso sem falar de políticos, desembargadores e até ministros. Diferente dos comuns mortais. Os famosos eram atendidos em uma sala VIP.

No material divulgado nas redes sociais há relato de curas, depoimentos e a exibição das cirurgias mediúnicas feitas por João de Deus em praticamente todas as sessões. Minha alma se encheu de esperança. Estava no local certo pensei e meu irmão, certamente, seria curado. Agarrada em uma fotografia onde ele sorria para mim, depois de uma longa espera, cercada por pessoas vestidas de branco, falando em vários idiomas, entrei na Casa do Milagre.

O tamanho e a simplicidade do local impressionam. Há loja de souvenir, onde são vendidos livros que narram a biografia de João de Deus, cristais, imagens de Santo Inácio de Loyola o protetor da casa e mais uma centena de quinquilharias. Na sala dos milagres, além de quadros gigantes com pinturas e fotos do médium, há também uma centena de objetos como próteses de pernas, braços, milhares de fotos e narrativas de milagres, mas os melhores relatos são ouvidos na fila mesmo, não são poucas as pessoas que  abandonaram seus países para morar em Abadiânia e fazer parte dos seguidores de João de Deus

Dentro da casa somos conduzidos a uma grande sala, onde ficamos ouvindo relatos de cura, muitos com a presença de intérpretes. No grande salão de atendimento, cercado por centenas de médiuns, todos de branco, lá está ele: Como um Messias, com seus grandes olhos azuis que não me olham, afinal ele está incorporado pessoa de pouca fé, eu penso. Mostro a foto do meu irmão que está com câncer, não consigo sequer explicar o quadro de saúde dele, João me interrompe e diz: Eu vou te ajudar, faz um rabisco num papel e sigo em frente, sem receber nenhum consolo pela minha dor.

É assim me dizem: Ele não fala, mas a espiritualidade sabe tudo. Sou encaminhada para a outra fila, a da Farmácia Dom Inácio de Loyola. Ali são vendidos os potinhos de passiflora com oitenta cápsulas, prescritos pelo médium, ao valor de 100 reais. No caso do meu irmão, talvez pela gravidade, foram três potinhos. As recomendações repassadas pelos fiéis, para durante o tratamento não beber, não manter relações sexuais e não comer pimenta. Ao lado da farmácia, as pessoas ainda podem comprar água fluidificada, imantadas com as mãos do Mestre, os preços vão de 3 a 30 reais, de acordo com o tamanho da garrafa.

Após o atendimento é servida uma reconfortante sopa “grátis”, feita por trabalhadores voluntários da casa, que ou receberam milagres ou são proprietários das pousadas, restaurantes, lojas de roupas brancas e lembrancinhas e que também lucram com a Catedral da fé de Abadiânia.

Chegando em Brasília, coloquei os três vidrinhos em um sedex e despachei para Cascavel, para minha grande tristeza e decepção, meu irmão faleceu antes de receber as “capsulas milagrosas”.

Ainda procurei uma justificativa: ele não me avisou da morte iminente do meu irmão para me poupar da dor. Mas uma voz de ceticismo interior respondeu: Mas por quê prescreveu os remédios?

Ao longo dos anos, mesmo com pouca fé, voltei outras vezes a Abadiânia levando amigos que chegavam de Porto Alegre e até do exterior em busca de atendimento mediúnico, nunca relatei minha decepção com o médium, para não tirar a fé de ninguém. Uma amiga que perdeu a guarda da filha; uma outra mais desesperada, traída pelo marido, queria consertar o coração partido: outro queria resolver sua extrema ansiedade. Para todos a mesma frase: Vou te ajudar e as cápsulas milagrosas.

Hoje, olhando de longe, penso que os milagres acontecem para quem crê nesses milagres e a passiflora distribuída a todos funciona como um placebo, da mesma forma as cirurgias espirituais.

Pelas denúncias, agora sabemos, que a Sala VIP, além de ser destinada aos famosos, era usada para violentar mulheres. Já são mais de 300 denúncias, com discrições muito semelhantes entre elas.

A catedral da fé de Abadiânia foi derrubada pelo próprio médium, que ao longo da estrada desvirtuou-se do caminho e de sua missão. Deslumbrado com a fama e o sucesso alcançado, julgou-se acima das Leis de Deus (de quem ele usurpa o nome) e dos homens, tornando uma prática corriqueira o assédio a fiéis. Tenho convicção de que 300 mulheres não podem estar erradas, a única dúvida que fica é por que demoraram tanto tempo para denunciar?

 

Foto – Imagem web