Relato da quarentena

Na primeira semana, por ossos do ofício, não desliguei a Tv, li todos jornais e participei de calorosos debates nas redes sociais. Acompanhei todas todos os deslizes, para dizer o mínimo, de um capitão maluco de uma nau sem rumo, que se tornou nosso país, nestes tristes tempos de coronavírus. Cansada de tanto debate, achismos e a saturação de lives – já notaram o aumento da quantidade de pessoas fazendo fotos e vídeos de si mesmos durante a quarentena? Tem para todos os gostos. Aulas de todos os idiomas, confecção de brigadeiro e pão sem glútem; ou como diminuir a glicemia e o colesterol para os mais velhos, e até como investir na Bolsa – numa época em que os gurus do mercado estão mais perdidos que o próprio Paulo Guedes e suas teorias da Escola de Chicago. Afinal, lá não falaram nada sobre coronavírus e o “Posto Ipiranga” do presidente depois de sugerir o desemprego em massa para salvar a economia, agora descobriu que sem trabalhador não existe produção, nem consumo, nem economia. Resolveu então, adocicar a pílula e soltou umas medidas um pouco mais humanas, sempre preservando o patrimônio em detrimento do trabalhador.

Cansei de tanta informação. O estoque de alimentos para um mês não durou uma semana e aqui em casa todos estão bem mais gordinhos, mas tomando sol no pátio, sem sair de casa, como recomendou o Doutor Mandetta, embora o Bolsonaro diga o contrário, afinal é só uma gripezinha. Comecei a ter pesadelos com Bolsonaro e Michele cercados por coronavírus gigantes, com general Heleno fugindo do Hospital e com militares me torturando e me chamando de comunista. Acordei suando, medi a temperatura, ufa! 37.5 ainda não é o coronavírus. Depois dos pesadelos chegou a insônia, olhos grudados no teto! Contando carneiros imaginários. A partir daí decidi meditar diariamente. Baixei todos os cursos virtuais de assuntos interessantes, separei livros e decidi desligar a televisão, me afastar das redes sociais e assistir filmes cult na Net  Flix.

Terceira semana. Quem consegue se concentrar numa época destas? Os livros foram esquecidos na estante, os cursos abandonados e as meditações com todos aqueles comandos programados começaram a me aborrecer.  Decidi mudar minha rotina cultural. Como dispensei minha secretaria, embora mantendo o pagamento e amparo a família dela, me joguei de cabeça na faxina. Lavei paredes, calçadas, limpei banheiros, encharquei o piso com KBoa dividida nas porções recomendadas, álcool 70 em todos os móveis, álcool gel nas mãos o tempo todo. Limpei vidros, janelas, persianas. Uma beleza, academia pra que? Eu aqui firme no escovão. Devo ter emagrecido os três quilos adquiridos na semana anterior e estou com ferida nas mãos por alergia a kboa, e aquela misturinha que coloquei no balde e depois fui ver que era soda. Falta de prática é uma merda.

Na quarta semana decidi interagir com os vizinhos em grupos de WhatsApp, enviei mensagens positivas, me ofereci para ajudar remotamente, afinal como coroa de 60 anos estou na faixa de risco e não devo sair de casa. Logo no primeiro dia, em um grupo de mães, me deparei com uma oferta “sui generis”. Corte de cabelo, escova, manicure e pedicure sem sair de casa. Iremos até você! Respondi: Pelo amor de Deus não venham! Fiquem em casa! Era do salão do bairro. Sugeri aos integrantes do grupo, que solidariamente continuassem pagando suas manicures e cabeleireiras para que estas ficassem em casa e assim estariam protegendo a elas e às suas famílias. As mãezinhas, tolas, ficaram indignadas comigo e minha proposta, disseram que tomavam todos os cuidados e continuariam mantendo sua rotina de cuidados e beleza. Ora pois! E eu estava provocando pânico no grupo com assuntos irrelevantes. Depois deste anúncio surgiram outros: Limpeza de pele, massagem, tudo à domicílio. Pensei com meus botões: Estarão bem lindas no caixão lacrado, mas decidi não provocar. A maioria delas, deduzo pelos posts, também não dispensou as empregadas domésticas, que elas, politicamente corretas, chamam de secretárias do lar. As secretárias chegam diariamente de Planaltina, Ceilândia, Recanto das Emas ou Varjão (cidades satélites ao redor de Brasília) a maioria colocando em risco suas próprias famílias, já que se locomovem em ônibus lotados para manter o emprego, sem ao menos receber por insalubridade – física e mental.

Hoje é sábado e me mantenho firme na quarentena. Troquei a faxina por polichinelos, corda de pular, abdominais e comecei a trocar algumas ideias com meu Pastor alemão, que estava se sentindo muito solitário do lado de fora e agora divide o espaço e os pelos conosco. Todos estamos felizes, menos nossa gatinha, que neurótica passou a arranhar o ar e soltar sons estranhos, mas ninguém liga.

Percebo um alvoroço de toques no grupo das mães. Curiosa, vou verificar o novo anúncio. Pasmem: Oba! Vai ter festa à fantasia na ”Mãedoteca PicNic”. Anunciam: Vista uma fantasia no seu filho e venha brincar com a gente! Compartilhe este post com toda a criançada e vamos espalhar alegria para nossos pequenos! Para uma mãe que pediu uma dica de fantasia, sugeri a de CoronaVírus, me bloquearam do grupo.